Aderlan Crespo
“O conflito não precisa
chegar a esfera do judiciário”.
1. Introdução
O objetivo deste
artigo é questionar a cultura da judicialização por parte da advocacia, nos
casos envolvendo conflitos jurídicos entre as pessoas. A permanente
tendência da advocacia em atuar de forma adversarial, ou seja, de
transportar o problema entre duas pessoas em um processo judicial, que muitas
das vezes significa o acirramento do conflito, corresponde a uma "cultura
da sentença judicial". O mais comum, e que aqui se questiona, é a postura
de aceitar o “caso” e, de imediato, partir para as soluções judiciais. Em
outras palavras, não se cogita como regra a solução não judicial do problema.
Ao contrário, o fato é incorporado pela técnica jurídica, para que seja
viabilizada uma ação judicial. Todavia, este modelo profissional acaba por
fomentar o conflito entre as pessoas envolvidas, conduzindo o referido conflito
ao Judiciário, como se fosse a melhor forma de atender ao cliente.
No entanto, o
conflito é um problema não resolvido entre os envolvidos, mas que pode ser
resolvido sim com a atuação dos profissionais jurídicos, sem necessariamente
haver processo. Advogados e advogadas devem atuar objetivando
auxiliar seus clientes, mas por meio de uma relação na qual se prevaleça o
diálogo positivo e saudável, mitigando-se a relação violenta entre as partes,
pelo qual seja favorecida a tolerância e o entendimento. As vantagens são
significativas, além do que prima-se pela humanização nas relações entre todos
e todas, isto é, que as pessoas demonstrem de fato a possibilidade de uma
profissionalização mais fraternal, tendo a empatia como base. A humanização
significa priorizar o respeito, a dignidade e concórdia nas relações da
profissão. O ser humano deve ser sempre a prioridade e, neste caso, todo
problema jurídico pode ter uma solução sem conflito judicial.
2. A função social da Advocacia
A trajetória da
judicialização no Brasil seguiu os modelos de Portugal, dada a época do
surgimento dos primeiros cursos jurídicos - Olinda e São Paulo - ainda no
século XIX. A Ordem dos Advogados do Brasil foi criada em 1930, sob o governo
de Getúlio Vargas, justamente no momento que este centralizava o poder do país
em suas mãos. A advocacia tornou-se, para além da romântica sonata propagada
socialmente, uma profissão de alto valor para toda a sociedade, com claros contornos
de aspectos políticos.
Mas, há um principal
objetivo da advocacia?
Esta é uma
pergunta que pode ser elaborada para questionar a histórica cultura
da advocacia litigiosa, aquela da propositura da ação, do processo judicial, da
sentença, ou seja, do conflito litigioso entre os envolvidos (na linguagem
forense: as partes).
A pergunta que
pode ser feita é: a cultura da judicialização, chamada de "Advocacia
Adversarial", pode ser substituída pela Advocacia Consensual? Certamente
que a resposta é sim!
Mas então, o que seria
a Advocacia Consensual?
Talvez, para entender o
início da mudança de paradigmas, precisamos retornar a década de 90, quando
surge a Lei de Arbitragem, cujo projeto foi de autoria do Senador Marcos
Maciel. Na referida lei o objetivo era a superação do processo judiciário por
um árbitro particular, que fosse, digamos, contratado para decidir o conflito.
Embora tenha surgido esta lei de arbitragem, o que vimos foi a manutenção
progressiva da advocacia baseada no processo, no litígio.
Desta forma, quais
são os fatores que inspiravam e inspiram ainda a grande maioria a advogar pelo
processo?
Esta indagação nos
faz olhar para os cursos de Direito, nos quais não há, no geral, um projeto
particular direcionado a solução alternativa ou complementar de conflitos.
Quando muito, podemos ver disciplinas eletivas de Mediação e Arbitragem. Não se
quer descartar o objetivo de formar profissionais competentes para a atuação
judicial, mas é preciso destacar a essência dos cursos, e evidentemente que é a
do litígio.
Por outro lado, a
própria Ordem dos Advogados pouco fez ainda para a alteração deste cenário.
Mas, é preciso reconhecer que novos passos foram dados no sentido da mudança.
Segundo o Conselho
Nacional de Justiça, em 2017 havia 80 milhões de processos no país aguardando
decisão terminativa (não se aplica aos processos criminais, pois a regra para
estes é a ação pública movida pelo Ministério Público, quando configurada a
autoria e materialidade de um crime). Ainda nesta pesquisa, a área que mais
concilia é a trabalhista, e o tempo médio da duração de um processo é de 03
(três) anos aproximadamente, sem a execução, podendo esta fase perdurar ainda
mais do que este tempo. Isso sem contar as despesas dos custos dos
processos, que para a população são bem elevadas. O próprio poder
público gasta muito com toda a estrutura existente.
3. Novos paradigmas legais para a solução dos conflitos
Todavia, o Novo Código de Processo
Civil-NCPC (Lei 13.105/15) lançou nova possibilidade de solução de conflito
consensual, por meio da previsão nas Normas Fundamentais do Processo Civil
(Livro I, Capítulo I):
Art. 3º Não se excluirá da
apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.
§ 1º É permitida a
arbitragem, na forma da lei.
§ 2º O Estado promoverá,
sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.
§ 3º A conciliação, a
mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos
deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros
do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
Quando o legislador incluiu esta
previsão normativa, logo no início do texto do NCPC, causou visivelmente um
impacto sobre a cultura judicializante, pois destacou-se que é dever do Estado
promover a solução consensual.
Certamente, antes mesmo do novo
código processual civil, já ocorria na prática a tentativa da conciliação,
precisamente no início das audiências (nas varas comuns ou juizados especiais
cíveis). Aliás, nos juizados especiais cíveis prevalecem os princípios da
oralidade e celeridade processual, para que por meio do debate seja possível
superar o conflito. Na figura do “conciliador” está configurada a idéia da
solução consensual, por mais que na prática seja mais um formal rito de
passagem.
Afora esta inovação trazida pelo NCPC,
o Congresso Nacional do Brasil, brilhantemente, aprovou em março do ano de 2015
o Projeto de Lei no. 517 de 2011, de autoria do Senador Ricardo Ferraço-PMDB,
criando a Lei no. 13.140/2015, conhecida como “A Lei da Mediação”.
Eis a ementa do seu Projeto de Lei:
Institui e disciplina o uso da mediação de conflitos em
quaisquer matérias em que a lei não proíba as partes de negociar; define
mediação com um processo decisório conduzido por terceiro imparcial, com o
objetivo de auxiliar as partes a identificar ou desenvolver soluções
consensuais; estabelece os princípios básicos do processo de mediação; dispõe
que o Mediador é o terceiro imparcial, com capacitação adequada e subordinação
a código de ética específico que, aceito pelas partes, conduzirá o processo de
comunicação entre elas, para que os envolvidos possam tomar decisões
informadas, na busca de soluções; estabelece que nos processos de mediação as
partes poderão ser assistidas por advogados; dispõe que a mediação pode ser
judicial ou extrajudicial, pode versar sobre todo o conflito ou parte dele;
estabelece que a participação na mediação será sempre facultativa; dispõe que o
procedimento da mediação é, em regra, confidencial e sigiloso; estabelece que o
procedimento a ser adotado na mediação judicial, bem como os requisitos para o
exercício da atividade de mediador, serão disciplinados pelas normas do Código
de Processo Civil e pelos parâmetros estabelecidos pelo Conselho Nacional de
Justiça; dispõe sobre as especificidades da mediação judicial e da mediação
extrajudicial; estabelece que obtido o acordo ou finalizada a mediação sem
acordo, será lavrado termo e assinado pelas partes, seus advogados e pelo
mediador; especifica o que deverá conter o termo de acordo ou o termo de
mediação; dispõe que o Conselho Nacional de Justiça criará e manterá bancos de
dados reunindo informações relativas à mediação; estabelece que a lei entrará
em vigor após decorridos cento e oitenta dias da data de sua publicação oficial.
Pela presente lei, que ainda caminha
muito timidamente, o objetivo é que os Tribunais, coordenados pelo Conselho
Nacional de Justiça-CNJ, possam adotar “Centros Judiciários de Solução de
Conflitos e Cidadania-Cejusc”, nos quais devem atuar os “mediadores”, que devem
ser devidamente capacitados, vez que a mediação exige toda uma forma de
abordagem e ações específicas, principalmente para que sejam facilitadores do
diálogo entre os envolvidos, diferentemente do que ocorre no atual modelo do
“conciliador”, nos juizados especiais cíveis.
Neste sentido, no Brasil houve um
avanço legislativo sobre a possibilidade de solução de conflito sem o litígio
processual. Ou seja, na parte legislativa sobre a atuação jurídica que mais
necessitava o Brasil, conquistamos duas inovações: o Novo Código de Processo
Civil e A Lei de Mediação.
Até o momento, não há uma
normatização específica sobre os objetivos profissionais direcionados a solução
consensual dos conflitos, segundo as legislações acerca da profissão ( Estatuto
da OAB e o Código de Ética).
No que pese as inovações surgidas com a
Lei da Mediação (Lei 13.140/2015), e provavelmente visando dar incremento à
advocacia não tiligiosa, como forma de atuação profissional em que o litígio
processual não seja a regra (advocacia adversarial), a Ordem dos Advogados do
Brasil lançou o Provimento no. 196/2020. Neste provimento afirma-se que as
atividades de conciliadores ou mediadores também se configuram como atividades
advocatícias. Não há necessariamente uma normativa interna da OAB voltada para
a Advocacia Consensual, ainda.
Agora, com as normativas legais e
infra-legais sobre a solução de conflito não litigiosa, em processo judiciais,
torna-se evidente que os advogados e as advogadas devem buscar repensar a
chamada “cultura do processo”, e buscar efetivar uma inovação na prática da
advocacia, posto que nesta alternativa cultural não há qualquer perda de
rendimentos, pois, ainda que não judicialize, o cliente será assessorado pela
competente e necessária atuação do advogado ou advogada, de forma a garantir e
proteger seus interesses. O que muda é a forma e os meios. O fim deve ser
sempre a defesa de direitos.
Todavia, esta reformulação da prática
advocatícia exigirá uma atuação direcionada a minimização dos ânimos, dos
sentimentos de raiva ou ódio, diferentemente da atuação presente na “cultura do
litígio”, na qual, por vezes, ou quase sempre, a advocacia acirra o conflito,
incrementa uma força em direção ao processo, incentivando ainda mais a relação
de hostilidade entre os envolvidos. E o desgaste é quase certo.
Conceito de Advocacia Consensual: é uma
modalidade da profissão advocatícia, privilegiando a atividade jurídica
extrajudicial, que prioriza a assistência jurídica não contenciosa (judicial),
à pessoa física e a pessoa jurídica, visando garantir a proteção dos direitos.
4. Princípios da Advocacia Consensual
Considerando que a Advocacia
Consensual prima pela solução dos conflitos sem considerar o
"processo" - advocacia extrajudicial, como a melhor forma de atuação
profissional, diferentemente da forma exercida pela Advocacia
Convencional, que cotidianamente prioriza a ação judicial, é preciso apontar os
princípios relacionados a esta nova forma de percepção da profissão, a ponto de
ser compreendida a nova filosofia deste modelo consensual da advocacia.
Portanto, pode-se identificar os
seguintes princípios norteadores da Advocacia Consensual:
a) princípio do entendimento entre as
partes;
b) princípio da não judicialização do
conflito;
c) princípio da celeridade da solução;
d) princípio da humanização das
relações entre os conflitantes;
e) princípio da concórdia;
f) princípio do diálogo racional;
Tais princípios configuram o que se
denomina Advocacia Consensual posto que o objetivo da solução dos conflitos
entre as pessoas tem como meio ferramentas que proporcionam provável
entendimento entre os envolvidos (partes), não alimentando a hostilidade
existente, mas ao contrário, objetivando a conciliação.
Nesta advocacia o advogado ou a
advogada devem estar preparados emocionalmente para atuarem de forma a,
pacientemente, alcançarem o entendimento entre os envolvidos. A inteligência
emocional do(a) profissional neste modelo de advocacia torna-se prioridade, a
ponto de se colocar como intermediário negociador entre os envolvidos.
Certamente que, a advocacia se torna
imprescindível quando há um conflito jurídico, mas o problema a ser solucionado
pode encontrar mais êxito, seja quanto aos honorários, seja quanto aos
interesses dos envolvidos, quando se evita ao máximo o processo, pois com a
judicialização do conflito haverá um longa, onerosa e desgastante relação entre
todos.
A Advocacia Consensual precisa
expandir-se no Brasil, pois os problemas decorrentes do alto número de ações
judiciais em curso não proporcionam soluções rápidas dos conflitos
jurídicos.
Duas são as máximas deste debate: a) um
conflito jurídico não precisa se tornar um conflito judicial; b) durante o
conflito judicial, em todas as instâncias possíveis, não há a certeza da
conquista do direito; c) na Advocacia Consensual os envolvidos ganham e perdem
ao mesmo tempo, na proporção de seus direitos.
5. Considerações finais
A ideia principal nesta nova cultura da
prática profissional da advocacia é fomentar a tolerância entre os envolvidos,
incentivar a análise não violenta da situação, tornando a situação jurídica um
motivo para a composição, para o consenso, ou seja, para o entendimento. Ainda
que pareça difícil, o papel da advocacia consensual extrajudicial é
vivável, possível e realizável. Trata-se de uma questão de decisão.
Portanto, a mudança de postura, de
atitude e de forma e conteúdo dos diálogos, devem iniciar, fundamentalmente, na
fase pré-litigiosa, com o cliente. Caberá ao advogado, ou a advogada,
apresentar o panorama do fato-problema, a partir de seu conhecimento técnico, e
conduzir a situação jurídica para uma fase posterior que será o da aproximação
com a “outra parte”, mas não como inimigos ou adversários, apenas como o “outro
envolvido”, visando o consenso.
Esta nova cultura da advocacia, que as
próprias normativas estão estimulando, faz com que as pessoas possam acreditar
em uma sociedade pautada pelo não pela discórdia, mas pelo entendimento como
regra nas relações. Portanto, os profissionais e as profissionais da advocacia
possuem um compromisso com este objetivo. A proteção da saúde da sociedade é um
dever de todos os cidadãos, que deve ser realizado diariamente e em pequenas e
grandes ações. Quando envolve o conflito entre as pessoas, cabe aos
profissionais envolvidos atuar de forma mais humanizada. O Poder Judiciário não
é um órgão supremo de justiça, mas um meio criado pelo Estado Republicano. As
pessoas podem promover a justiça pela autocomposição, intermediadas por
profissionais que cumpram esta função, mediante uma interlocução negociadora. A
justiça pode ser feita por qualquer pessoa, principalmente quando advogados e
advogadas estão conscientes desta virtuosa capacidade humana. Eis uma visão
possível de futuro. O futuro poderá ser diferente, e a advocacia pode e deve
fazer parte dele.